Manifesto (2001)

“A Anedota é “uma pequena narração de carácter gracioso, jocoso.” Só? São raríssimos o estudiosos que perderam o seu douto tempo a analisá-las. A anedota, na visão clínica de um dicionário, não merece mais do que duas linhas definidoras. Mas entusiasma multidões! À pergunta: “Já ouviste a última?”, ninguém responde negativamente. A anedota é universal, todas as culturas têm as suas. A sua natureza permite-lhe infindáveis traduções e versões, que nenhum autor sequer sonharia para as suas obras sérias. Mas nunca ninguém se lembrou de assinar a sua, a anedota é sempre anónima. A anedota transcende a tal ponto a noção de autor que nos podemos perguntar se teve autor. A anedota é actual, aparece sempre destruindo a seriedade dos assuntos falados no momento. A anedota é implacável, não respeita mortos, nem políticos, nem papas, nem deuses, nem dores… A anedota é cínica, é ideológica. A anedota transmite maioritaria-mente os valores dominantes, e menos frequentemente a visão de culturas minoritárias. A anedota é quase sempre nietscheana, ri-se sem pudor do fraco e do aleijado que estorva, é a super-anedota. A anedota também repugna e faz-nos sentir mal das próprias gargalhadas, a anedota incomoda. A anedota é constantemente reconstruída a cada vez que é contada. A anedota transforma o espectador de há pouco, em co-autor. A mesma anedota morre ou renasce no boca-a-boca, a mesma anedota pode ter toda ou nenhuma piada conforme a pessoa que a conta e o cenário ambiente. A anedota é sensível às situações. A anedota desperta o actor e o mimo que todos transportamos connosco. A anedota é exigente e o pudor mata-a. A anedota luta contra todas essas vergonhas com palavras feias, com ácidos palavrões que corroem os ouvidos dos moralistas. A anedota goza, caralho, com as tuas ideias! A anedota circula mais rapidamente que qualquer ideia. Em pouco tempo todos sabemos a “última”. A anedota é forte, tem a energia do que está vivo e é divertido. Dá vontade de rir e impele-nos a partilhar essa estúpida alegria com os outros. Todas as tentativas para domesticar e comercializar a anedota são um fracasso. Ninguém compra livros de anedotas porque, simplesmente, não têm piada. A anedota é oral, não se dá com as regras da liguagem escrita e muitas vezes ridiculariza a própria língua. A anedota é política e social como o Homem. A anedota faz gato sapato dos valores e das crenças. Em tempos tão monitorizados a anedota é uma das últimas manifestações colectivas, todos partilhamos essa obra. A anedota reforça amizades, marca inimigos e inicia boas discussões. A anedota pode ter mil caras, mas é sempre irresponsável e representa a faceta antisagrada dos Homens. A anedota não se louva. A anedota, por fim, esquece-se, quando se torna demasiado conhecida ou quando desaparecem os seus motivos ou as suas personagens. Tem a vida justificada e um prazo exacto.

CALDEIRA 213 as boas anedotas que queremos ser.”


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